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Um grande, muito grande professor


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Imagem criada por Inteligência Artificial


Abriu os olhos e se viu numa sala de jantar. Respirou fundo aquele ar leve, fresco, sentiu o coração acelerar e isso o fez feliz.


Imediatamente reconheceu o homem que já o esperava sentado à mesa, sorridente e acolhedor. Caminhou até ele, puxou a cadeira e se divertiu fazendo de conta que estranhava:


- Epa! Mas... São Pedro?... E, ainda por cima com a camisa do São Paulo??? Se fosse, pelo menos, a do Santos...


O homem abriu ainda mais o sorriso e respondeu:


- Senta aqui, Luiz Carlos. Vamos comer, que você está precisando... Então achou que eu ia te receber sem uma piada? Justo você?


Realmente estava com fome e com a disposição para devorar aquele frango perfumado, que já estava à sua espera. Sentou-se enquanto falava em tom de desculpas:


- Poxa, frango? Eu não posso comer frango...


São Pedro franziu o cenho, pareceu estranhar e se esforçou para fazer sua melhor cara de "como assim?" Ele explicou:


- É que eu sou goleiro.


São Pedro deu aquele sorriso de piada ruim, que a gente acha graça, mas faz cara de protesto. Luiz Carlos amava isso... e emendou:


- Sério... eu jogava futebol. Jogava no Inter... No intervalo, completou fazendo pausa e cara de "te peguei de novo". Prosseguiu:


- Não, é sério. Eu marcava o Alan... O alambrado.


Naquela noite, tiveram pouco tempo para recebê-lo como deveriam. Chegou de surpresa, era quase meia-noite. Acordaram um jovem anjo, recém saído do estágio, para ajudar na recepção. Com a piada, o rapaz revirou os olhos e, telepaticamente, perguntou para São Pedro:


- Meu Santo! Vai ser assim por toda a eternidade?, murmurou em pensamento, quase em tom de desespero.


A resposta telepática de São Pedro ao novato foi doce, didática e elegante, exatamente como vira Luiz Carlos fazer ao longo de toda a sua vida:


- Meu rapaz... Vá ali e olha por aquela janela. Lá embaixo, tá vendo aquela moça que acaba de receber a notícia, sentada na cama, num susto, sem chão, sem conseguir nem processar a informação? Daqui a dois dias, ela estará na frente de um computador, sozinha, ainda muito chorosa, escrevendo o que está acontecendo aqui. Vá lá e tente ver se consegue consolar o coração dela e da família deste homem. Eles dariam de tudo para ouvir essa piada de novo por muitos e muitos anos... Ou você acha que pedi frango à toa?



Não uso este espaço para falar de temas pessoais, mas sei que a profissional é também a pessoa e, no meu caso, realmente, tudo junto e misturado. Casada com um professor, nora de outro, tive a felicidade de ter criado os vínculos mais profundos de amizade com, praticamente, apenas professores. Ou seja, minha vida pessoal é bem parecida com uma escola.


Muito escrevo sobre gestão de escolas, sobre dados, escrevo muito sobre educação contemporânea, sobre novas abordagens, sobre educação para o século XXI. Mas hoje preciso reverenciar, dolorida que estou, um professor que nunca soube, nem precisou, de nada disso. Não leu nenhum dos meus textos, não sabia o que era Blog, não usava computador, nunca teve redes sociais, nem WhatsApp. E foi um grande, muito grande professor.


Suas aulas sempre se apoiaram no uso de imagens, sempre abusou de sua multimídia natural. Sem ligar nada na tomada, fazia das suas lousas obras de arte. Desenhava. Magnificamente. Ensinava. Magnificamente. Era elegante, como jamais fui. E de tão elegante jamais criticou, tampouco deixou de amar e até de admirar essa nora e educadora desbocada, expansiva demais, que era, em sala de aula, rock'roll. E ele, um banquinho e um violão.


"Aos 86 anos, o professor Luiz Carlos Bernardi, mestre de mais de 50 mil alunos, morreu por conta de complicações decorrentes de um câncer, na noite desta segunda-feira (15), em Bauru. Com 56 anos de dedicação ao magistério, deu aulas para médicos, engenheiros e promotores de Justiça que, até recentemente, quando o encontravam pelas ruas de Bauru, faziam questão de abordá-lo e lembrá-lo: "o senhor foi meu professor".
O carinho de ex-estudantes dos ensinos fundamental e médio, de escolas públicas e privadas, era sempre apreciado pelo mestre, que deu aula de inglês, ciências e biologia em instituições de cidades como Bauru, Jaú, Botucatu, Lins, Marília, Lençóis Paulista e Cabrália Paulista, bem como Londrina e Rolândia, no Paraná." (Jornal da Cidade, Bauru, 17/05/2023)

Admirei - e continuarei admirando - este profissional educador "das antigas", que deu aulas até os 77 anos de idade, porque - onde quer que trabalhasse - não o deixavam parar. Alunos do século XXI o respeitavam como referência do mesmo modo que seus pais fizeram. Só mais um ano, professor, não podemos deixar de ter seu nome na nossa escola.


Amei - e continuarei amando - este homem, maestro e mestre, que regeu nossa família num compasso harmônico, fluido, que ele não impunha: definia, apenas por seu jeito de ser.


Jamais terei sua habilidade no desenho. Mas a tecnologia já me permite ilustrar esse texto tentando imitar seus traços. Jamais tive sua habilidade emocional. Sobre isso a tecnologia não prepondera. Essa habilidade eu vou ter de ver se desenvolvo sozinha, para honrar seu sobrenome.

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O anjo, aprendiz enviado, me traz dele um recado: "neste fim de semana, vai ter a Maifest e você não vai querer ir, porque vai se lembrar demais de mim. Mas o chopp daqui é melhor, o chopp daqui é Divino (eita, Luiz Carlos!)... E eu, aqui, estou me sentindo super bem, como me senti a vida toda, e, daqui, vou poder beber com vocês!"


Luiz Carlos, tenho de encerrar brincando com as palavras: esta habilidade imitei de você. Mas hoje está doendo demais para achar graça.


Você foi o sogro que pedi. Adeus!



 
 
 

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