Provas (contra si mesmo)
- Rose Bernardi
- 3 de ago. de 2022
- 4 min de leitura

A cena ocorre num início de ano, no final da década de 70, em alguma sala de aula da 1ª série de um Curso Técnico em Engenharia, nível Ensino Médio. O professor de Física anuncia que trouxe as provas corrigidas. O clima é de ansiedade. Os alunos ainda não se conhecem muito bem, recém-admitidos que foram em um exigente processo de seleção para ocuparem as poucas vagas oferecidas naquela renomada instituição. Tudo o que se sabe deles é que são considerados a excelência acadêmica para sua faixa etária e área de interesse e que estariam dispostos e preparados para um desafio ainda maior. Ainda tateiam em sua percepção sobre a escola e o seu temido nível de exigência. Aquele será o primeiro feedback que receberão.
O professor faz um prólogo sobre os resultados pífios da turma como um todo. Esperava mais dos alunos, via-se que não estavam prontos como se supusera. Iam ter de ralar, e muito, se quisessem mesmo ostentar um diploma daquele lugar.
Distribuídas as provas, os alunos rodeavam o professor, pedindo que se revisasse algum aspecto da correção ou que se considerasse satisfatória alguma parte da resposta, ou que se levasse em conta o raciocínio, ainda que ele não tenha se encontrado com a resposta correta... Um deles, envergonhado do 0,5 no alto de sua prova, se juntou ao grupo, completamente perdido.
Tão perdido, que nem estava ali para reivindicar coisa alguma. Nem saberia como, nem por onde começar, nem identificar em suas respostas algo que pudesse ser um digno objeto de revisão. Estava ali para, no máximo, ver como os outros faziam. Aprender a imitá-los. Só não foi suficientemente esperto para manter uma prudente distância do professor e permanecer recolhido à invisibilidade que sua insignificância acadêmica merecia. O professor, irritado e pressionado pelos demais, tomou-lhe a prova das mãos e disparou: “O que você tá querendo aqui? Quer reclamar dos seus nove e meio?”.
Súbito silêncio. Todos os olhares se voltaram, rápidos e atônitos, para identificar o dono dos 9,5, que, a esta altura, já dava uns passos para trás de cabeça baixa, incrédulo, olhos aflitos em buscar a perninha minúscula que transformaria um retumbante fracasso num espetacular sucesso. Sim, ela estava lá. Atrofiada, mas havia uma perninha, sem dúvida. E, então, o zero, munido de uma superperninha, revelava-se ali o nove que elevaria aquele aluno desconhecido à categoria de mito da turma.
Infelizmente, esta não é uma narrativa de final feliz, porque nem a vida nem a educação são simples, lineares e maniqueístas como são os contos de fadas. Esta é, na verdade, a história de um absurdo, no qual muitas escolas, tanto tempo depois, ainda estão inseridas. O fato aconteceu, sim, e é digno de ser contado não só porque todos adoram um bom plot twist, mas porque, pondo-lhe os véus abaixo, o que está ali é simplesmente a história de um estudante, como milhões de outros, que há décadas - séculos? - não têm a menor noção de como eles próprios atuam no processo de aprendizagem. O menino em questão aceitava que sua produção fosse valorada tanto no rodapé quanto no teto da escala de notas porque não tinha, mesmo, a menor ideia do que estava fazendo quando participou daquela avaliação. Ou seja, ele era o avaliado, mas de forma absolutamente passiva: não lhe forjaram minimamente, ao longo de uma escolarização bem-sucedida (lembremo-nos de que ela parte de um pelotão de elite acadêmica) ferramentas básicas para que pudesse julgar o seu próprio trabalho. No dia a dia, são milhões os que levam para casa, no fundo de suas mochilas, provas mais ou menos amarrotadas, encabeçadas por números que nenhum sentido lhes têm. Fosse um 0,5 ou um 9,5.
Escolas não perceberam, ainda, que, sem tornar os alunos entendedores e, assim, cúmplices do seu próprio processo de aprendizagem, não se constrói o mínimo necessário para que lhes seja possível atuar sobre ele. Sucessivas gerações saem dos bancos escolares formadas e conformadas com a crença de que seu desenvolvimento foi fruto de uma sina, de uma carga genética, de um alinhamento cósmico, de uma condição preestabelecida e imutável qualquer, que irá, fatalmente, lhes limitar os horizontes ou, na melhor das hipóteses, premiá-las por algo de que não têm culpa nem mérito. E que, por ser oriunda do acaso, pode, por ironia dele mesmo, deixar de ser suficiente.
Curiosa uma expressão com a qual todos nos acostumamos ao longo de nossas vidas escolares: “fazer prova”... Ao pé da letra, a avaliação seria o momento em que o aluno produz uma prova, uma comprovação de quanto vale academicamente. Desde o nome, foco total e exclusivo no resultado. A conduta do pós prova, muitas vezes, só reitera esse mesmo princípio: reconhecimento pela boa performance; censura (mais ou menos velada) pela má. De novo: foco total e exclusivo no resultado. No fundo, o aluno, contrariando um conhecido princípio do direito, acaba produzindo uma prova que atua contra si mesmo.
Bom seria que o que estivesse sob avaliação não fosse o aluno, mas o processo de aprendizagem por que ele passa. Que a “prova” fosse meio e não fim. Se não estiver claríssimo que o papel da escola precisa ser o de direcionar o olhar dos alunos para a aprendizagem, capacitando-os e envolvendo-os no entendimento e condução do processo de que eles são sujeitos únicos, corre-se o sério risco de que se perpetuem as gerações que continuam a excomungar os maus resultados, como se, sem eles, fosse possível, algum tipo de crescimento.
Este artigo foi publicado, pela primeira vez, em 2019. Mas continua tão incomodamente atual, que foi inevitável replicá-lo aqui.



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