Papo de Uber: um causo de cultura tóxica.
- Rose Bernardi
- 18 de ago. de 2022
- 3 min de leitura

Desde que muitos de nós abrimos mão da solidão dos nossos carros e passamos a dividir nosso trajeto, reflexões e interesses com outras pessoas - particularmente com os motoristas de aplicativo - histórias e insights interessantíssimos vêm pipocando aqui e ali nas redes sociais. Este post fará o mesmo.
Entre a Lapa e Santo Amaro, em dia útil, uma hora de corrida... E a conversa com o motorista fluiu diversificada e divertida até que chegou à inesperada confissão: eu era professor. Sério? E por que deixou de ser? Quando foi isso? - pergunta, espantada, a passageira que aqui escreve para o moço, nitidamente jovem, que havia deixado para trás uma carreira mais jovem ainda.
Saí no ano passado. Não dava, o ambiente lá era ruim, sabe? As pessoas eram ruins... Como assim? Quero saber mais, muito mais. Isso me interessa muito. E ele vai, aos poucos, contando, num tom sereno, mas que ainda vem pontuado de um pouco de mágoa, um pouco de culpa por não ter resistido, um pouco de alívio. Não foi a pandemia, não foram os alunos, nem as famílias. Nada. Era um caso clássico de cultura tóxica. Bem tóxica.
Ricardo (seu nome fictício) foi admitido numa escola particular, de remuneração interessante, para assumir uma boa quantidade de aulas. Uma parte delas, especificamente, dependeria muito da interação com os colegas, de planejamento conjunto, de um alinhamento fino entre eles. E era exatamente nesse contexto que o pior de cada um se revelaria.
Ele era o novato, num grupo de veteranos, acostumados a tocar suas vidas como vinham tocando desde sempre. Faziam o que era necessário para manter aparências, mas eram os verdadeiros donos do currículo da porta da sala de aula para dentro. Liderados por um coordenador igualmente veterano, formavam um grupo bem próximo e coeso, inclusive no nível pessoal. Não demorou muito para que Ricardo começasse a se sentir excluído, ignorado e até mesmo sabotado. Decisões que haviam sido alinhadas entre o grupo, eram modificadas posteriormente, sem que ele soubesse, e Ricardo acabava exposto, até para os estudantes: parecia ser ele o elemento destoante, o elo frágil da corrente. Até que, num certo dia, viu que os créditos de um projeto seu haviam sido publicamente atribuídos a outra pessoa. Nesse momento, pediu ajuda à coordenação. E a reação, como já se pode prever, foi a omissão.
Ambientes tóxicos não são comuns em escolas, muito pelo contrário. Professores são naturalmente tremendamente generosos e acolhedores, gostam de ensinar, gostam de contribuir para a formação de novos professores, como se fossem seus alunos. Mas, às vezes, pouco a pouco, surge a corrosão sutil, que ninguém percebe e, por isso, ninguém combate. Valores vão imperceptivelmente mudando de lugar e, milimetricamente, acabam percorrendo uma longa jornada para longe de onde deveriam estar. E, mesmo só conhecendo a versão de Ricardo, ouso julgar: a inação da liderança que ele me descreve contribuiu muito para esse estado de coisas.
Desço do Uber, esperando ter convencido Ricardo a tentar novamente, noutra instituição: há um número infinitamente maior de ótimos ambientes de trabalho nas escolas do que de ruins. Sei que ele teve azar.
Mas também espero que a história dele não me tenha sido contada em vão: fiz questão de partilhar porque pode (e deve!) servir de alerta para que tantos outros líderes, coordenadores ou diretores, mantenham-se vigilantes e zelosos. A integração de novos profissionais tem de ser cuidada com intencionalidade, estratégia e consistência, ao invés de deixá-la ao sabor da sorte ou, como nesse caso, ao triste dissabor do azar.



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